Senti o golpear de um arrepio a percorrer-me o corpo quando recebi a ordem decretada.

O olhar frio e austero que a acompanhou dilacerou-me por completo a consciência e a

esperança na argumentação. Petrificada, diante da sua autoridade, articulei um pequeno

gemido imediatamente interpretado como um sim. O meu futuro estava traçado e aquele

som mavioso foi o grito de dor que a minha alma não conseguiu abafar.

Aquela pretensão martelava-me com insistência na mente atónita quando, em total

alheamento e assombro, regressei aos aposentos onde Zilpa me aguardava para dar

continuidade à exigência imposta. Desviei distraidamente o olhar para o leito onde

repousava o vestido nupcial de linho finamente urdido. A leveza do tecido transparecia

uma brancura quase imaculada embelezada por delicados bordados florais. Era

lindíssimo, porém, naquele momento, não lhe achei encanto algum. Ao lado o véu, que

me ocultaria mais tarde o rosto, e a tiara ornamentada de lírios.

– Diz-me que estou a sonhar. Diz-me que nada disto é verdade – supliquei-lhe por entre

lágrimas.

– Lamento, menina, mas terá de se conformar – disse-me tranquilamente.

– Conformar? – ironizei ao consciencializar-me da partida que o destino me desferia.

– Ou subjugar-me totalmente à autoridade e domínio do meu pai? – ela baixou a cabeça

em silêncio. De imediato percebi a inexistência de hierarquia entre nós, eramos as duas

servas de Labão.

Lá fora no arraial, Jacó e Raquel celebravam, ingenuamente, um casamento que não iria

ser consumado enquanto eu me debatia com a nova realidade imposta: ser a esposa de

Jacó.

Durante sete anos fui para ambos uma amiga leal. A ele, ajudei-o nas tarefas diárias de

pastoreio e a planear variadíssimos encontros, sendo também o pombo-correio dos seus

recados apaixonados. Para Raquel fui confidente e conselheira, dado ser um pouco mais

velha. É verdade que nunca tinha vivido um relacionamento amoroso, nem me tinha

apaixonado, mas a idade, e o amadurecimento próprio da mesma, ajudavam-me a ver um

pouco mais além. Desempenhei com dedicação o papel de irmã e amiga e fui cúmplice

das suas inúmeras trocas de olhares. Cúmplice e leal até aquele fatídico dia. Eu, o elo de

ligação durante tantos anos, transformava-me agora numa barreira existencial.

Era impossível não vestir o papel da traidora quando, após o demorado banho

aromático que Zilpa me deu, enfiei o elegante vestido.

– Está tão bonita, menina – exclamou com animação.

– Olha bem para dentro dos meus olhos e diz-me sinceramente se estou bonita.

– Claro que está! A menina é possuidora de um olhar repleto de encantos e de um

coração transbordante de bondade e amor. O Senhor vai dar-lhe o ânimo, e a coragem

necessária para ultrapassar a tristeza que agora sente, creia nisso! – assegurou-me.

– Pois… só o Senhor me pode ajudar, só Ele – gerou-se um longo silêncio entre nós

subitamente interrompido pelo chamamento do meu pai:

– Estás pronta, Leia? – quis saber dalém da cortina que impedia o acesso aos aposentos.

– Sim. Estou pronta – respondi com comoção na voz.

Fustigada por impulsos que oscilavam abruptamente o meu corpo, devido ao terror

daquela hora, gelei completamente. O meu pai entrou e, ao afastar a cortina que nos

separava, observou-me de alto abaixo. Foi humilhante a sensação de poder e domínio

que aquele olhar me causou. Senti-me como um animal encurralado, examinado ao

pormenor antes da compra. Porém esta avaliação era escrutinada pelo meu próprio pai.

A sua visão e astúcia para os negócios desconheciam limites, importava o lucro final, os

meios que usava para os obter eram detalhes de menor importância.

Não teceu nenhum comentário o que me fez concluir estar do seu agrado. Apoiei-me na

sua mão e deixei-me conduzir até à divisão onde Jacó nos aguardava.

Lancei ao meu progenitor um último olhar, todo ele suplicante, na expectativa de que

desistisse de dar continuidade ao meu infortúnio, mas em resposta recebi nova ordem:

– Não pronunciarás uma só palavra até que tudo esteja consumado – o tom agressivo na

sua voz não me deu alternativa, sem forças para mais limitei-me a consentir.

A iluminação a meia-luz do compartimento impedia uma visão nítida de formas e

silhuetas, impossibilitando a Jacó perceber que era eu, e não Raquel, quem ali se

encontrava. O plano fora meticulosamente orquestrado para não sair gorado e se da

minha parte houvesse a pretensão de ser reconhecida, sem ir contra as ordens recebidas,

ao deparar-me com aquele cenário ela ter-se-ia desvanecido.

O meu nervosismo não passou despercebido, mas dada a solenidade e emoção do

momento, Jacó encarou-o com normalidade. Após a curta cerimónia, e na tentativa de

me tranquilizar um pouco, envolveu-me num abraço afectuoso e sussurrou-me

meigamente:

– Vem sem receio, minha querida, não irei fazer-te nenhum mal – na sua voz ecoava a

doçura encantadora dos acordes melodiosos que só o amor é capaz de expressar.

O desgaste emocional a que fui sujeita naquele curto espaço de tempo causou em mim

uma fragilidade indefinível, e a ternura, e a envolvência que se seguiram, fizeram com

que sucumbisse por completo nos braços de Jacó e me entregasse sem resistência ao

meu destino.

A manhã despertou envolta em densas neblinas e a brisa, que se fazia sentir lá fora,

anunciava a chegada de um Outono bastante rigoroso, mas bem mais inóspita, era a

realidade do meu matrimónio. O olhar alucinado que Jacó me depositava cravou a

minha alma de aflição. O seu semblante desfigurado e os movimentos descompassados

eram típicos de um animal encurralado e traído. Traído no amor. Fitava-me por isso

com desconfiança e sem piedade. Tinha caído numa armadilha e o isco, usado para a

sua captura, era eu. Tentei acalmá-lo e demonstrar-lhe que entendia a sua frustração e

sofrimento, mas ele desconsiderou-me. O seu rosto espelhava a dor da traição mas

principalmente a dor da perda.

Trabalhou, incansavelmente, ao longo de sete anos, durante esse tempo poetizou

detalhadamente aquela noite e agora deparava-se com a cilada do seu tio e sogro. O

sonho transformou-se rapidamente em pesadelo e a dureza do seu olhar foi uma mágoa

que tive de suportar sozinha.

Abandonou de forma repentina e violenta os aposentos para ir ao encontro do meu pai.

Visivelmente perturbado e enraivecido deu-me motivos para recear o pior.

– Zilpa, Zilpa! – gritei.

– Sim, menina o que aconteceu? – perguntou aflita.

– Jacó foi ter com o meu pai, foi pedir-lhe contas. Corre, vê o que sucede e se for preciso

chama por ajuda. Vai, anda! – gritei-lhe ansiosa.

Atrapalhada saiu a correr da minha presença.

Com o olhar fito no nada e tendo por companhia a minha desventura aguardei por

notícias que não tardaram muito em chegar.

– Está tudo bem menina, o senhor é muito sábio e rapidamente acalmou Jacó seu marido

– informou-me.

– Acalmou? Como? – perguntei estupefacta erguendo-me do leito onde me encontrava.

Zilpa examinava-me minuciosamente as feições onde permanecia estampada a tristeza

da véspera.

– Sim, menina – pronunciou baixando a cabeça – dentro de sete dias teremos nova

celebração cá em casa.

– Nova celebração? De que falas tu, mulher? – inquiri.

– Labão, seu pai, vai dar Raquel em casamento a Jacó, seu marido, dentro de sete dias.

– Ah?! Diz-me que ouvi mal? – mas não ouvi.

O destino pregava-me novamente um duro golpe, porém a minha reacção causou uma

apreensão geral e até eu me surpreendi com ela.

Inicialmente submetida a um conúbio por exclusiva submissão às ordens do meu pai,

padeci mais por Raquel e por Jacó do que por mim, mas algo mudara, entretanto. Algo

que me era completamente novo e desconhecido. Eu amava Jacó e só agora tomava

consciência disso.

Tornei-me então aborrecida e comecei a olhar para Raquel de maneira diferente, via como

uma adversária, detentora de atributos que me colocavam em desvantagem. Ela era

possuidora de um formoso semblante e formosa à vista e tinha também o facto de ser a

mais nova e a ovelhinha mansa, como carinhosamente meu pai lhe chamava. Já eu, não

tinha sido bafejada por essas sortes. A minha beleza, se assim se pode chamar, era

simples e desprovida de qualquer atractivo. Sempre fora valorizada pelo meu trabalho e

pela minha dedicação ao pastoreio. Amava o que fazia, não havendo nenhuma tarefa,

ainda que braçal, que me causasse afronta. A minha robustez física contracenava com a

delicadeza do porte de Raquel. Ela tinha beleza, juventude, o amor do meu pai e

principalmente o amor de Jacó. As diferenças entre nós eram abismais.

Mas Jeová foi misericordioso e olhou para a minha angústia e na Sua infinita bondade e

compaixão concedeu-me a graça de conceber o primogénito de Jacó. Ao meu primeiro

filho dei o nome de Ruben, sendo que agora meu esposo iria começar a amar-me, mas tal

não sucedeu. Nasceu depois Simeão, Levi e Judá e a cada nascimento renascia também

a esperança de ganhar o seu amor. Pura ilusão, a primazia do seu coração continuava a

ser de Raquel só que também ela foi acometida por um forte sentimento de inveja

porque no seu ventre não se gerava o fruto desse grande amor.

Quando a emoção se sobrepõe à razão germina a impaciência aliada à imprudência, e

Raquel na ânsia de ser mãe não esperou que Deus lhe abrisse a madre e entregou a Jacó

a sua serva de nome Bilha, que lhe deu dois filhos, Dã e Naftali.

Deparei-me então com duas adversárias, minha irmã e a sua serva. Acometida da

mesma imprudência, e não querendo ser mais humilhada, também eu entreguei Zilpa a

Jacó, para que concebesse. Tal como Bilha, minha serva Zilpa gerou dois filhos. Foram

eles Gade e Aser.

O tempo ia passando e eu permanecia sem o seu afecto. O meu único contentamento era

ser a geratriz de um número maior de filhos, mas Deus sabia o quanto eu o amava, e por

mais três vezes me renovou a graça, permitindo-me conceber Issacar, Zebulom e Dinã.

Foi então que a esperança de ganhar o seu amor se desvaneceu por completo. Nada que

eu fizesse, ou dissesse, alteraria os seus sentimentos por mim.

Desengane-se, pois, quem pensa que pode escolher a quem amar, só o coração tem essa

decisão, e no coração de Jacó o amor acolhera apenas por Raquel.

Canalizei então, e decididamente, todo o meu apego e atenção nas minhas bênçãos que,

de personalidades tão variadas e distintas, me enchiam de orgulho e alegria.

Uma tarde, porém, não resisti à dúvida que incessantemente me assaltava. Necessitava

de saber, de forma clara e objectiva, que sentimento nutria por mim.

A tarde estava amena vislumbrando-se no horizonte a aproximação do entardecer. As

crianças, que brincavam alegremente aos pastores, corriam de forma alegre e sonora

atrás dos cordeiritos que se esgueiravam agilmente por entre as suas mãos diminutas.

Jacó observava-as deliciado.

Abeirei-me dele calmamente e, lado a lado, apreciámos os risos e a harmonia da sua

descendência. O facto de serem gerados em quatro barrigas distintas não tinha nenhuma

importância.

Da minha boca jorrou por fim a inquietação que desde sempre morou na minha mente e

coração.

– Poderás algum dia dizer-me que me amas? – o olhar de Jacó permaneceu fixo no

horizonte, enquanto o meu lhe observava atentamente a fisionomia. Após um longo

silêncio, que me pareceu demasiado excessivo, respondeu-me:

– Amo, a ternura do teu olhar.

Florbela Ribeiro ©

Publicado na Revista SCRIBO, nº 0, página 24  da AECE

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